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VISÃO

PA!

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

25/ago

2025

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2513

Nas últimas décadas, a vertente autobiográfica tem ganhado considerável força no panorama teatral por meio de encenações em que os artistas expõem acontecimentos fundamentais e frequentemente dramáticos de suas vidas. Esses trabalhos são concebidos, na maioria das vezes, no formato de solo, como atos de revelação, dada a natureza intransferível dos conteúdos abordados.

Há muitos exemplos: Estamira, monólogo em que Dani Barros entrelaçou a jornada da catadora de lixo do Jardim Gramacho, diagnosticada com esquizofrenia, com a de sua mãe; Tripas, gestado a partir de uma experiência de quase morte de Ricardo Kosovski; Mamãe, em que Álamo Facó trouxe à tona a fase final da vida da própria mãe; Ficção, reunião de solos ou duos dos integrantes da Cia. Hiato centrados em vivências particulares; Conversas com meu Pai, no qual, como o título anuncia, Janaína Leite evocou o vínculo com o pai; e Chega de Sobremesa, montagem em que Stela Freitas rememorou fatos dolorosos de sua trajetória.

Em todas essas iniciativas – e em tantas não citadas – fica claro que o artista discorre sobre episódios de sua história de vida, mesmo quando ocasionalmente adota uma identidade fictícia em cena. A elaboração dramatúrgica, porém, não depende desse “disfarce”. Também costuma estar presente nos vários casos em que os artistas usam seus nomes, assumindo a fala em primeira pessoa. Pa! – Solo Teatral, atualmente em cartaz no Sesc Copacabana, se inscreve dentro dessa corrente teatral. O ator Guilherme Logullo expõe traumas familiares, em especial na interação com um pai violento e abusivo.

Com dramaturgia de Logullo, em parceria com Arthur Makaryan (que dirige o solo), Pa! abre e encerra com a franqueza do depoimento do ator. A transparência do relato se impõe como registro de atuação de Logullo, que interpreta um personagem, ainda que de si. A interpretação existe nos momentos em que o ator se mostra desarmado em cena – até porque não há como se manter indiferente à presença da plateia – e não apenas naqueles “explícitos”, em que Logullo “incorpora” o pai ou discursa ao microfone.

Contrastando com essa atuação invisível, Makaryan e Logullo investem numa dramaturgia física bem menos direta e frontal. Esse texto do corpo nasce de uma articulação entre teatro e dança, que preserva o enigma ao não fechar sentidos nem indicar mensagens. Determinados movimentos parecem marcar oposição à contundência do solo, como se instaurassem alguma leveza. Mas o que predomina é um corpo pulsante, em extravasamento constante.

A iluminação de Paulo Denizot acompanha os registros distintos de uma cena que oscila entre a palavra confessional e a expressão corporal catártica ao mesclar a luz fria com outra menos “dura”, passagens em que a cor invade o palco. A cenografia de Marieta Spada, composta por nichos preenchidos por elementos de caráter simbólico (cadeira e banco de criança, pedra, pia), propõe visual intencionalmente asséptico “poluído” pela vibração sanguínea do ator no decorrer da apresentação. O figurino de Karen Brusttolin evidencia um traje sóbrio, de formalidade tradicional, que vai sendo desconstruído rumo à manifestação de uma identidade sexual não atada a padrões pré-estabelecidos.

Pa! traz Guilherme Logullo em projeto bastante diverso – de certa maneira, contrário – aos musicais de grande porte dos quais vem participando ao longo dos anos. Com prática acumulada nesse gênero filiado ao teatro de mercado, o ator, aqui, transita para uma proposição experimental e minimalista, provavelmente norteado pela necessidade de afirmar uma voz pessoal. Logullo atrita discurso e fisicalidade, atuação oculta e partitura estilizada, em solo que reverbera no espectador.

◼️ PA!
⏰ ter e qua, 19h | 22/jul a 27/ago
🏠SESC Copacabana
Rua Domingos Ferreira, 160 - Copacabana
16 anos | 60'

▪️Direção do armênio Arthur Makaryan
▪️Com Guilherme Logullo


🎭 Daniel Schenker é jornalista, crítico de teatro e cinema, professor e pesquisador. Doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, leciona na CAL e colabora para o jornal O Globo. É autor do livro Teatro dos 4 - A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno (7Letras).

📧 http://danielschenker.com.br
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EDDY - VIOLÊNCIA & METAMORFOSE

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

21/jul

2025

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2305

Os espetáculos da Companhia Polifônica são norteados pela articulação entre o teatro e manifestações artísticas diversas (em especial, no que se refere à escolha de textos literários como pilares dos projetos e à inclusão do multimídia na cena) e pela valorização de material de natureza autobiográfica. Eddy – Violência & Metamorfose, novo trabalho do grupo atualmente em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana, confirma esses princípios.

Se em encenações anteriores a Polifônica realizou operações dramatúrgicas a partir de obras dos escritores J.P. Zooey (em Galáxias), Tatiana Salém Levy (em Vista) e Roberto Bolaño (em Deserto), agora a companhia se debruça sobre livros de Édouard Louis (O Fim de Eddy, História da Violência e Mudar: Método). Experiências reais permanecem em destaque – não as dos atores, mas, aqui, as do escritor (Édouard/Eddy), que aborda o encontro meteórico e aterrorizante entre ele e outro homem.

No que diz respeito aos universos temáticos das montagens, Eddy se aproxima bastante de Vista, apesar das significativas diferenças. Em Vista, a circunstância do estupro ocorre depois que uma mulher é rendida por um homem desconhecido; em Eddy, tanto a vítima quanto o algoz são homens e a violência irrompe após um contato amoroso entre ambos.

Na trajetória da companhia, a transposição para o palco de depoimentos de indivíduos confrontados com situações extremadas vem se dando através da articulação entre teatro e cinema – o primeiro calcado numa “essencialidade” que se traduz na priorização do ator e da palavra, e o segundo, na necessidade do aparato tecnológico, de imagens que transcendem as “limitações” do espaço teatral.

Por meio do entrelaçamento dessas duas expressões artísticas, Luiz Felipe Reis (em parceria com Marcelo Grabowsky na direção e na dramaturgia do espetáculo) conjuga tempos distintos: o passado, próprio do cinema, que consiste na exibição de imagens pré-gravadas (delimitação temporal, porém, relativizada quando imagens registradas em cena ganham projeção imediata); e o presente, base do ato teatral que se estabelece diante do espectador.

Em Eddy, o multimídia adquire funções variadas. Serve como contextualização histórica e geográfica, como captação de um dado momento nas jornadas dos personagens, como comprovação de uma intencional dissociação entre a cena e a imagem mostrada na tela. Mesmo que nem todas as inserções do multimídia se revelem fundamentais (parece um elemento pré-determinado dentro da linguagem desenvolvida pela companhia, dessa vez acentuado pela conexão de Grabowsky com o cinema), a Polifônica vem, ao longo dos anos, refinando a incorporação da tecnologia nos espetáculos.

Além disso, a contracena entre passado e presente não desponta “apenas” através da interface entre teatro e multimídia, mas também no registro interpretativo, que oscila constantemente entre a narração (sob a forma de relato) e a vivência. O relato implica em inevitável ficcionalização. Afinal, os fatos vêm à tona não por meio de reconstituição “pura”, intocada e imparcial, e sim de acréscimos e subtrações decorrentes do modo particularizado como foram introjetados por cada indivíduo. As informações são fornecidas a policiais, segundo a conjuntura proposta na dramaturgia, e ao público, destinatário não explicitado (não há quebra da quarta parede), de acordo com a concepção da encenação.

Os integrantes do elenco administram a alternância entre um certo distanciamento emocional próprio do relato e a intensidade do acontecimento no instante em que transcorre. João Côrtes transmite a vulnerabilidade de Eddy em atuação sustentada pelo domínio da palavra e que não envereda pelo caminho mais previsível da visceralidade. Igor Fortunato e Julia Lund acumulam personagens, mas cada um se dividindo entre uma figura mais importante (o agressor no caso dele, a irmã de Eddy no dela) e outras eventuais. Fortunato marca as transições com recursos sutis, como o olhar, ao invés de composições físicas convencionais. Com apreciável controle da voz, Lund imprime bem medida dose de contundência e indignação à irmã.

As atuações sem excessos resultam da condução econômica de Luiz Felipe Reis e Marcelo Grabowsky, qualidade perceptível na cenografia de André Sanches, constituída por componentes básicos (cadeira, colchão, microfone), com exceção do impacto causado pela tela, e nos figurinos de Antônio Guedes, a maioria em tons neutros. Mas a precisão da montagem pode ser constatada ainda nas cenas assumidamente estilizadas e “performáticas”, nas quais a teatralidade eclode com mais evidência: aquelas voltadas para a interação entre os corpos nas manifestações de vida e de morte. A expressividade dessas passagens se deve, em grau preponderante, à excelente direção de movimento de Lavínia Bizzotto.

Eddy – Violência & Metamorfose demonstra fidelidade e amadurecimento em relação à pesquisa artística da companhia.

◼️ EDDY – VIOLÊNCIA E METAMORFOSE
⏰ qui, sex e sáb, 20h | dom, 19h
até 31 de agosto
🏠 Teatro Poeira
Rua São João Batista, 104 - Botafogo
18 anos | 110'

Baseado em três obras do autor francês Édouard Louis, o espetáculo costura memórias de infância, episódios de violência e reflexões sociais em torno de classe, gênero, homofobia e xenofobia.

A trama parte de um caso real de violência vivido pelo autor e se desenvolve a partir de conversas entre ele e a irmã, interligando passado e presente, opressão e transformação.

▪️Direção: Luiz Felipe Reis e Marcelo Grabowski.
▪️Com João Côrtes, Igor Fortunato e Julia Lund.
A partir de R$ 60

🎭 Daniel Schenker é jornalista, crítico de teatro e cinema, professor e pesquisador. Doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, leciona na CAL e colabora para o jornal O Globo. É autor do livro Teatro dos 4 - A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno (7Letras).
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VISÃO

HELENA BLAVATSKY, A VOZ DO SILÊNCIO

por CLAUDIA CHAVES - jornalista, escreve sobre cultura e teatro

28/nov

2025

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Em nossa sociedade, as pessoas vivem, feito baratas tontas, procurando encontrar sua verdadeira essência. A procura em religiões, seitas, rituais, princípios filosóficos, dietas, caminhos, relacionamentos nem sempre produz qualquer resultado. A angústia aumenta, diminui, mas nem sempre se resolve. E podemos imaginar como é interessante, a trajetória de uma mulher, que, há 150 anos, procura encontrar um caminho. Essa é a história da peça “Helena Blavatsky, a voz do silêncio”.
Helena Blavatsky é o resultado de uma antiga e bem-sucedida parceria entre a autora/atriz Beth Zalcman e o diretor Luiz Antônio Rocha. O texto da filósofa Lúcia Helena Galvão faz com que a personagem conte a sua história, de forma cronológica, e como conseguiu realizar uma trajetória para o momento histórico e sociedade de forma corajosa e inusitada, tenho morado, inclusive, no Tibet durante três anos.
A forma escolhida por Luiz Fernando e Beth é um enorme acerto, pois tudo é feito como uma pintura que se movimente, com as limitações da tela digital funcionando como moldura. A iluminação, inspirada nos efeitos esfumaçados do Impressionismo, também atende à questão espiritual que sempre pensamos como algo difuso. Dois coelhos numa cajadada é algo raro de encontrar.
A interpretação de Beth se torna um manancial de tons, assim como um bom quadro, no qual temos pontos brilhantes, sombrios, longe/perto, destaques, detalhes que crescem, uma composição de figura/fundo na qual a personagem é explicada, sem observações, além de contar os fatos e exprimir os sentimentos. Se Helena criou a teosofia como princípio, Beth e Luiz Antônio confirmam que fazer um belo espetáculo é sempre uma grande criação.

⏰sex/sáb, 20h30 | dom, 19h
28 a 30/nov
🏠 Teatro Clara Nunes
A partir de R$ 80

🎞 𝘾𝙡𝙖𝙪𝙙𝙞𝙖 𝘾𝙝𝙖𝙫𝙚𝙨 é jornalista, com passagem por redações como Jornal do Brasil e Rádio MEC, escreve sobre cultura, comportamento e viagens, misturando informação e afeto.

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A BALEIA

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

01/jul

2025

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A Baleia, peça do norte-americano Samuel D. Hunter, é bastante reconhecível, tanto em relação aos temas apresentados quanto à construção dramatúrgica. Abordando os últimos dias de vida do professor Charlie, com movimentação limitada pela obesidade, o texto destaca as diferentes interações entre ele e personagens que passam, com frequência, por seu cotidiano: a amiga e enfermeira, que insiste para que se interne no hospital, sem, porém, deixar de satisfazer suas vontades; a filha, que destila amargura como reação à falta de contato no decorrer dos anos; a ex-mulher, que justifica o prolongado afastamento; e um missionário dividido entre o fervor religioso e a quebra de uma moral arraigada. Em medida considerável, os personagens se mostram confinados, seja geograficamente (como Charlie, impedido, pela condição física, de sair de casa), seja emocionalmente (a filha e o missionário, mais resistentes em suas posturas, e a ex-mulher que, por razões diversas, estendeu o distanciamento entre pai e filha).

Filiada à vertente realista, a peça não se restringe a uma descrição dos acontecimentos no presente. O passado de Charlie se impõe com força. Há um personagem invisível, mas onipresente (o falecido namorado de Charlie), e eventuais descobertas que vêm à tona ao longo do texto. Em termos de estrutura, a maioria das cenas consiste em conversas ou confrontos entre Charlie e outro personagem (com exceção de passagens em que D. Hunter reúne mais de duas figuras). Minimizando apenas parcialmente o tradicionalismo da peça, o autor promove articulações diretas entre a jornada de Charlie e referências precisas – Moby Dick, monumental romance de Herman Melville, e a parábola bíblica de Jonas e a Baleia.

À frente da montagem atualmente em cartaz no Teatro Adolpho Bloch, Luís Artur Nunes não evitou um certo nivelamento na temperatura das cenas durante o espetáculo. Mas, em comparação com a versão cinematográfica assinada por Darren Aronofsky, o diretor secou, oportunamente, o potencial melodramático do texto. Além disso, não cedeu aos atrativos de uma concepção estética embelezada. As criações que constituem a montagem – cenografia (de Bia Junqueira), figurinos (de Carlos Alberto Nunes) e iluminação (de Maneco Quinderé) – seguem à risca o retrato traçado pelo autor acerca da realidade de Charlie e dos demais personagens. A ambição de arrebatar o público no campo visual fica concentrada no impacto propiciado pela cena final. Priorizando cores neutras, o cenário traz elementos do ambiente do protagonista – em especial, o sofá, onde passa quase todo o tempo – e por sugestões da arquitetura da casa. Uma espécie de plataforma suspensa e inclinada serve como solução às cenas em que Charlie interage, de modo virtual, com os alunos. A trilha sonora de Federico Puppi produz uma sensação de ameaça.

No que diz respeito ao elenco, Luís Artur Nunes conseguiu um resultado bem equilibrado. José de Abreu, mesmo num personagem voltado para uma linha de interpretação pautada pela composição física (movimentos reduzidos, respiração ofegante), projeta o autoabandono emocional de Charlie, sem perder de vista as ocasionais aberturas para o humor. Luísa Thiré desenha, com clareza, o conflito da dedicada enfermeira, que oscila entre a extrema preocupação com a saúde de Charlie e a disposição em possibilitar que ele tenha prazer em seus instantes derradeiros. Alice Borges, em breve participação, valoriza, com sutileza, o misto de sentimentos no reencontro com o ex-marido – o espanto diante de seu corpo, a lembrança da mágoa pela separação, o espaço para uma dose de afeto – e comprova o ajustado timing de comédia no embate com a filha. Gabriela Freire dimensiona a revolta da filha, uma personagem desenvolvida na peça com menos colorido dramático. Eduardo Speroni faz o conturbado missionário estabelecendo contracenas distintas e fluentes com os personagens.

A Baleia é uma peça norteada por revelações, a exemplo do momento em que Charlie expõe aos alunos seu corpo até então ocultado. As revelações também se manifestam por meio de explicações fornecidas em sucessivos acertos de contas. São, nesses casos, inseridas para gerar alguma surpresa na plateia e mais confirmam do que subvertem a adesão do texto a determinadas convenções dramatúrgicas. De qualquer maneira, a montagem fisga o público não só pelos apelos da peça, mas por interpretações adensadas e por contribuições artísticas propositivas.

◼️ A BALEIA
⏰ qui, sex, sáb, 20h | dom, 18h
até 26/jul
🏠 Teatro Adolpho Bloch - R. do Russel, 804 - Glória
14 anos | 1h40

José de Abreu volta aos palcos após mais de uma década na versão brasileira da peça A Baleia, de Samuel Hunter.
O espetáculo, que inspirou o filme homônimo premiado com o Oscar, aborda a história de um professor recluso que busca se reconectar com a filha.
▪️Direção: Luís Artur Nunes
▪️Com José de Abreu, Luisa Thiré, Gabriela Freire, Eduardo Speroni, Alice Borges

A partir de R$ 25


🎭 Daniel Schenker é jornalista, crítico de teatro e cinema, professor e pesquisador. Doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, leciona na CAL e colabora para o jornal O Globo. É autor do livro Teatro dos 4 - A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno (7Letras).
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JOÃO BETHENCOURT (1924-2006) | HOMENAGEM

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

01/dez

2025

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Um dos maiores nomes da tradição da comédia de costumes, gênero que atravessa a história do teatro brasileiro desde o começo do século XIX, João Bethencourt (1924-2006) está ganhando homenagem. A programação da mostra João Bethencourt – Um Homem de Teatro, resultado da soma de esforços de Cristina Bethencourt (filha do autor), Tania Brandão e Silvia Monte, inclui leituras dramatizadas de algumas de suas peças e exposição – tudo em cartaz no Teatro Glauce Rocha, com entrada gratuita, até 10 de dezembro.

Nascido na Hungria, Bethencourt construiu sólida trajetória no Brasil como diretor e, principalmente, como dramaturgo. Entre as suas peças, As Provas do Amor foi montada por Maurice Vaneau no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e A Ilha de Circe ou Mister Sexo, sob a sua condução, no Teatro do Rio, grupo liderado por Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque. Outros textos foram aclamados pelo público – casos de O Dia em que Raptaram o Papa (consagrada no exterior), Bonifácio Bilhões e A Venerável Madame Goneau.

Apesar de formado como engenheiro agrônomo, Bethencourt se aprimorou no terreno artístico na Universidade de Yale. Estabeleceu parcerias duradouras, em especial com o ator Jorge Dória e com o diretor José Renato, participou das efervescentes domingueiras na casa de Anibal Machado e conviveu com os produtores Jorge Ayer e Oscar Ornstein. Adaptou e traduziu diversas peças, sinalizando particular interesse pela dramaturgia de Molière. Não por acaso, dirigiu montagens de Escola de Mulheres, O Doente Imaginário, As Malandragens de Scapino e O Avarento.

Bethencourt também assinou encenações de muitas comédias, como Plaza Suíte, de Neil Simon (com Fernanda Montenegro encabeçando o elenco), A Gaiola das Loucas, de Jean Poiret, Camas Redondas, Casais Quadrados, de Ray Cooney e John Chapman, A Divina Sarah, de John Muriel (com Tonia Carrero), O Amante Descartável, de Gerard Lauzier, Quarenta Quilates e Lily e Lily (as duas últimas de Pierre Barillet e Jean-Pierre Grédy e em montagens protagonizadas, respectivamente, por Henriette Morineau e Eva Todor). Dirigiu ainda a renomada atriz portuguesa Eunice Muñoz em Summer and Smoke, de Tennessee Williams. Sua experiência no campo da direção foi comprovada no mundo acadêmico, mais exatamente no Departamento de Direção da UniRio.

Para o ciclo de leituras que está sendo apresentado, às quartas-feiras, na Sala Murilo Miranda, foram selecionadas as peças O Colar da Rainha (lida, com direção de Silvia Monte, na semana passada), Tem um Psicanalista na Nossa Cama (atração de hoje, com direção de Paula Sandroni), a citada Bonifácio Bilhões (marcada para semana que vem, com direção de Antonio Gilberto) e A Ovelha Rebelde (agendada para o dia 3 de dezembro, com direção de Cristina Bethencourt). Em relação a Tem um Psicanalista…, uma informação curiosa: de início, a peça se chamava Dolores Três Vezes por Semana. O título confundiu parte do público, que acreditou que a encenação era realizada três vezes por semana. Diante dessa indefinição, o espetáculo não fez boa bilheteria. Mas se tornou sucesso a partir do instante em que foi rebatizado.

No que diz respeito à exposição, com curadoria de Tania Brandão e Cristina Bethencourt e disposta no foyer do Teatro Glauce Rocha, reúne fotos e programas de espetáculos, maquetes de cenário e objetos pessoais do dramaturgo, como a máquina de escrever em que trabalhava e prêmios de teatro conquistados. A programação terminará no dia 10 de dezembro, data em que Bethencourt completaria 101 anos, com uma festa teatral.

Com percurso profissional abordado por Rodrigo Murat no livro O Locatário da Comédia (Imprensa Oficial), João Bethencourt é um mestre do vaudeville e um dos vários autores brasileiros pouco lembrados no aqui/agora. Por isso, a mostra dedicada a ele surge como uma oportunidade preciosa.

◼️ JOÃO BETHENCOURT – UM HOMEM DE TEATRO
GRATUITO
Exposição
João Bethencourt- Vida e Obra
⏰ qua a dom |13h às 19h
Foyer do Teatro Glauce Rocha
Leitura dramatizada
A OVELHA REBELDE
duração: 60'
⏰ qua, 03/dez às 18h30
▪️ Texto: João Bethencourt
▪️ Direção: Christina Bethencourt
▪️ Com Gustavo Ottoni, Marília Coelho, Nilvan Santos e Ricardo Schöpke
Sala Murilo Miranda (8º andar)
Festa Teatral
⏰ qua, 10/dez às 18h
Sala Murilo Miranda (8º andar)
🏠 Teatro Glauce Rocha
Av. Rio Branco, 179

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UM JULGAMENTO – DEPOIS DO INIMIGO DO POVO

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

03/nov

2025

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3013

A reflexão sobre a verdade está no centro de Um Inimigo do Povo, peça do norueguês Henrik Ibsen, e da apropriação dramatúrgica realizada pela diretora Christiane Jatahy, pelo ator Wagner Moura e pelo roteirista Lucas Paraizo na encenação atualmente em cartaz no Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). O protagonista do texto, o médico Thomas Stockman, se aproxima da figura do fanático da verdade, presente em peças de Ibsen, como O Pato Selvagem. Em sua cruzada pela verdade, Thomas não tem sua tenacidade questionada de maneira crítica, talvez pelo fato de defender uma causa nobre ao invés de se intrometer na esfera privada de outros indivíduos que eventualmente preferem conservar, em suas jornadas, uma capa de ilusão.

Thomas e seu opositor, o irmão e prefeito Peter, são, isto sim, personagens que simbolizam tomadas de posição contrárias diante do mundo: enquanto o primeiro prioriza a ciência, lutando pela saúde da coletividade em detrimento dos interesses econômicos, o segundo valoriza o lucro financeiro da cidade turística onde vive, ameaçado caso a estação balneária seja fechada a partir da divulgação da notícia de que a água está contaminada. À medida que a peça avança, Thomas é cada vez mais classificado como idealista e desconectado das urgências da realidade imediata, percepção distorcida que o condena a um crescente isolamento, e Peter se promove como porta-voz de uma perspectiva pragmática e bem menos incômoda.

Conforme anunciado no título, Jatahy não se “limita” a montar um texto de modo convencional, movida “tão-somente” pelo objetivo de contar uma história ao público. Nesse espetáculo, investe numa situação posterior à apresentação dos personagens e do conflito. Mostra os desdobramentos do embate entre o transparente Thomas e o manipulador Peter por meio do enfrentamento passional de ambos num tribunal. A plateia é transportada para essa circunstância, como se acompanhasse um julgamento e não uma representação teatral – por mais que o espaço onde a ação se desenrola seja mencionado como teatro. Uma proposta que lembra, em algum grau, a de Eduardo Wotzik na encenação de O Interrogatório, de Peter Weiss, com a diferença de que esta recomeçava até completar 24 horas, o que fazia com que a maioria do público assistisse a trechos e não a integridade da apresentação/do julgamento.

Em Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo, os espectadores, além de testemunharem as argumentações de Thomas e Peter na exposição de seus pontos de vista, podem se candidatar a ver o espetáculo do palco, como integrantes do júri que avaliará se o protagonista é ou não um inimigo do povo. A realocação do público não se restringe aos espectadores que são deslocados fisicamente; também abarca o restante da plateia, que permanece em suas cadeiras, mas é levada a “se sentir”, pelo menos em certa medida, numa audiência de tribunal. As marcações frontais contribuem para que o público vivencie a ambientação do tribunal com mais veracidade e ocasionalmente “se esqueça” do ato teatral descortinado à sua frente. Há uma ocultação da teatralidade – que contrasta, no trabalho de Jatahy, com a revelação do artifício, da construção artística, seja através do desmonte do cenário em E se elas fossem para Moscou?, seja da presença da equipe técnica no palco em Corte Seco – nessa encenação elaborada a partir de estratégias de sedução do espectador. Uma proposição algo superficial, ainda que bastante eficiente.

A concepção visual da montagem, que reproduz o contexto do tribunal, colabora para esse apagamento do teatral. Há, no palco, os elementos necessários – as mesas onde os participantes do julgamento se encontram dispostos, as cadeiras, ao fundo, destinadas aos espectadores que “atuam” como integrantes do júri (cenografia de Thomas Walgrave), e a tela, que, localizada no meio do palco, dimensiona a importância do multimídia no teatro de Jatahy. Os atores aparecem vestidos de acordo com o perfil e a função que exercem (figurinos de Marina Franco). No entanto, a teatralidade não fica totalmente escondida, a exemplo da iluminação (de Walgrave), que, de forma discreta, transcende o funcional e gera uma impactante cena final.

Christiane Jatahy evidencia coerência com suas diretrizes de trabalho. Como em espetáculos anteriores – em especial, Julia (a partir de Senhorita Julia, de August Strindberg) e E se elas fossem para Moscou? (a partir de As Três Irmãs, de Anton Tchekhov), a encenadora se dedica a uma operação autoral sobre texto clássico. Em Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo, Jatahy reduz os personagens em cena, colocando Thomas, a filha dele, Petra, professora que desponta como advogada, Peter e, em breve participação, o editor do jornal. Os demais personagens – a esposa, os filhos e o sogro de Thomas – surgem em vídeo. A diretora volta, portanto, a estabelecer articulações entre a peça e a pesquisa centrada na interface entre teatro e cinema. Insere na estrutura do espetáculo sequências pré-gravadas, que dinamizam a ambientação única do tribunal ao trazerem os personagens – tanto os incluídos em cena quanto os de fora – em espaços diversos, com outras registradas no instante da apresentação. Relativiza, assim, o conceito do cinema como arte unicamente atrelada ao passado.

A conjugação entre passado e presente também se manifesta por meio da narração e da vivência dos acontecimentos na atuação de Wagner Moura. Na abertura e no encerramento do espetáculo, o ator se descola de Thomas, seu personagem. Observa-o à distância, comenta sobre ele, reforçando o teatro como instância da ficção, apesar de imprimir uma presença em primeira pessoa, desarmada, não representada. Wagner Moura e Danilo Grangheia aderem à “interpretação invisível”, atravessada pela naturalidade, sem resquícios de impostação. Moura se movimenta com muita fluidez pela variedade de estados emocionais de Thomas, que oscila entre a sobriedade de explanações contundentes e os rompantes de descontrole. Já Grangheia é menos catártico, em sintonia com um Peter sempre provocador, e se destaca não “apenas” através da fala como da escuta. Os dois atores demonstram pleno domínio da palavra. Julia Bernat, como Petra, filha de Thomas, transita da postura racional ao extravasamento.

Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo busca uma proximidade direta com o público, capturado por meio de mecanismos de inclusão na cena e de envolvimento na atmosfera do tribunal. A esses apelos se soma a aclimatação da peça ao Brasil. Em relação aos principais nortes de sua trajetória como encenadora – as dessacralizadas abordagens de peças clássicas e a mescla das linguagens do teatro e do cinema –, Christiane Jatahy mais confirma uma coerência do que desenvolve a pesquisa. O resultado, porém, conquista o espectador através de procedimentos executados com grande competência.

◼️ UM JULGAMENTO – DEPOIS DO INIMIGO DO POVO
16 anos | duração: 150'
⏰qua a sáb e seg, 19h| dom,18h
até 03/nov
🏠Teatro II do CCBB
R. Primeiro de Março, 66
A partir de R$ 15

▪️Texto: Christiane Jatahy, Wagner Moura e Lucas Paraizo (inspirado em peça de Ibsen)
▪️Direção: Christiane Jatahy
▪️Com Wagner Moura, Danilo Grangheia e Julia Bernat. Participação de Stella Rabello.
▪️Participações no filme: Marjorie Estiano, Jonas Bloch, Salvador Moura, Antônio Falcão, Antônio Rabello, José Moura.
▪️Participação online: Tatiana Henrique.
📷 Caio Lírio

🎭 Daniel Schenker é jornalista, crítico de teatro e cinema, professor e pesquisador. Doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, leciona na CAL e colabora para o jornal O Globo. É autor do livro Teatro dos 4 - A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno (7Letras).

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HAIR

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

11/ago

2025

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Sintonizados com a tendência atual de reeditar sucessos, Charles Möeller e Claudio Botelho investiram, recentemente, em segundas montagens de A Noviça Rebelde, O Despertar da Primavera e Cole Porter – Ele Nunca Disse que me Amava. Seguindo essa linha, ambos realizam agora uma versão de Hair – 15 anos após o espetáculo que conduziram –, em cartaz no Teatro Riachuelo. Apesar de não serem destituídos de risco, esses projetos priorizam a segurança do produto aclamado em detrimento da incógnita do novo. De qualquer maneira, não se pode minimizar a oportunidade oferecida a espectadores que não tiveram acesso à primeira encenação, as contribuições de um elenco distinto e um eventual diálogo com os dias de hoje.

Esse é o caso de Hair. Mesmo voltada para um contexto específico – a ideologia hippie, paz e amor, na Nova York de 1968, período agitado pela quebra dos padrões comportamentais e dos tabus sexuais, mas assolado pela violência da Guerra do Vietnã –, a peça suscita articulações com o painel do século XXI, atravessado por guerras, pela perspectiva de mundo pragmática e pelo afastamento em relação ao espírito de comunhão que imperou em décadas passadas.

Com texto e letras de Gerome Ragni e James Rado, Hair mais descortina um panorama do que apresenta o desenrolar de uma história. O público se depara com um grupo de jovens hippies, afinados no questionamento e na oposição ao sistema estabelecido – a começar pela instituição familiar –, o que não significa que formem um bloco único livre de discordâncias. Dois personagens despontam: Berger, líder do grupo, que subverteu sua imagem de tradicional estudante bem-sucedido, e Claude, dividido entre a anarquia contestatória e a imposição da família para se enquadrar, o que, naquele instante, consistia em dar provas de nacionalismo, se alistando e partindo rumo ao Vietnã.

O teor político e a qualidade das letras, transformadas em música pelo compositor Gal MacDermot, garantiram o impacto de Hair. O musical estreou, na década de 1960, na cena teatral de Nova York (primeiro no circuito off-Broadway e depois estourando na Broadway) e logo desembarcou no Brasil, em montagem dirigida por Ademar Guerra. Foi posteriormente transportado para o cinema por Milos Forman em filme celebrado que propôs determinadas alterações na história.

Nessa revisita de Möeller/Botelho, a comunidade hippie se reúne num teatro abandonado (e não numa fábrica, como na primeira versão da dupla). Nas laterais há frisas que comportam parte da equipe técnica. Mas as projeções “explodem” com essa delimitação espacial. São utilizadas para destacar a visão de mundo transcendental dos jovens hippies e a deformação da realidade, tanto da moral arraigada da família (por meio da imagem da casa degradada) quanto da Guerra do Vietnã como imenso pesadelo.

O rompimento da localização sinalizada e da moldura da cena também acontece nos momentos em que o espetáculo extravasa do palco para a plateia, seja com o elenco transitando pelos corredores do teatro (às vezes, em ocasionais interações com os espectadores), seja através de efeitos, como a neve cenográfica ao final. Uma concepção estética intencionalmente excessiva materializada no cenário de Nicolás Boni. O colorido vibrante é valorizado nos figurinos de Charles Möeller, que sobrepõem, de modo expressivo, estampas variadas, e na iluminação de Vinícius Zampieri.

A integração, evidenciada nas criações visuais, se manifesta no elenco, entrosado nas cenas de conjunto, particularmente nas passagens coreografadas por Alonso Barros. O rendimento coletivo é mais marcante do que o individual, ainda que caiba mencionar atuações. Rodrigo Simas, em que pese certa limitação no canto, transmite, com vigor, a rebeldia e o inconformismo de Berger. Eduardo Borelli, ao contrário, sobressai mais no canto do que na interpretação, algo linear, de Claude, distante da intensidade do conflito que assombra o personagem. O equilíbrio entre o domínio do texto e da técnica vocal aparece mais em Estrela Blanco – no papel de Sheila, emocionalmente dependente de Berger. Thati Lopes – como a grávida Jeannie, sempre demonstrando uma percepção peculiar do mundo – revela ótimo timing. Drayson Menezes imprime presença contundente como Hud. E Wagner Lima e Rafa Vieira divertem com a cena de humor do encontro entre o casal de turistas e os hippies, o primeiro por meio de registro expansivo e exuberante e o segundo, de trabalho de corpo minimalista.

Espetáculo que contagia pelas canções (direção musical de Marcelo Castro e a versão brasileira a cargo de Claudio Botelho) e pela habilidosa orquestração da cena, Hair não perdeu a vitalidade ao longo dos anos.

◼️ HAIR - DEIXA O SOL ENTRAR
⏰ qui e sex às 20h, sáb às 16h e às 20h, dom às 15h | 04/jul a 21/set
🏠 Teatro Riachuelo
R. do Passeio, 38 - Centro
18 anos | 150'

▪️Direção: Charles Möeller & Claudio Botelho
▪️Com Rodrigo Simas, Eduardo Borelli, Thati Lopes, Drayson Menezzes, Pietro Dalmonte e outros

Com um elenco poderoso de 30 atores, a montagem traz de volta sucessos atemporais como “Aquarius” e “Let the Sunshine In”, em um espetáculo que celebra o amor livre, a liberdade de expressão e o espírito revolucionário da juventude. Inspirado pelo movimento hippie e pela luta contra a Guerra do Vietnã.

🎭 Daniel Schenker é jornalista, crítico de teatro e cinema, professor e pesquisador. Doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, leciona na CAL e colabora para o jornal O Globo. É autor do livro Teatro dos 4 - A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno (7Letras).

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VISÃO

PRIMA FACIE

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

09/jun

2025

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2058

Prima Facie, peça de Suzie Miller, tende a afetar o público por meio da contundente denúncia de um sistema perverso que protege os homens diante de violências cometidas contra as mulheres. A autora concebeu uma estrutura claramente dividida em duas partes, cada uma representativa dos polos emocionais – a segurança decorrente das sucessivas conquistas profissionais e a vulnerabilidade gerada por um fato traumático – vivenciados pela personagem, a advogada Tessa.

Ela cruza de um extremo ao outro, da posição de ataque à de vítima, de maneira brusca. A transição é demarcada por uma passagem de tempo. O espectador é informado sobre ela através de recurso de projeção, no fundo do palco. Trata-se de um lapso de tempo, “não um intervalo e sim um hiato, uma fenda”, entre a cena anterior e o que virá a seguir. Esse hiato é um ponto enigmático, que pode assinalar, além da realidade objetiva, uma sensação subjetiva dentro de um texto, de resto, sempre direto. Tessa se refere ao choque que sofreu como acontecimento ocorrido poucas horas antes (portanto, não teria havido intervalo de tempo significativo). Mas depois a personagem menciona um arco temporal (“763 dias”, ela diz), destacando o prolongamento de sua via-crúcis existencial.

Seja como for, a fenda desponta como um símbolo. É através dela que Tessa, confrontada com a própria impotência diante da injustiça do mundo, consegue continuar sua jornada. A importância dessa brecha, determinante à sobrevivência da personagem, ganha visualidade concreta na montagem de Yara de Novaes por meio de uma pequena abertura no espaço cenográfico. Os conteúdos do texto surgem traduzidos, materializados, nos diversos setores de criação que integram a encenação. Por isso, o espetáculo, em cartaz no Teatro Adolpho Bloch, não se restringe à transmissão ao público de uma relevante mensagem de alerta, o que seria limitado sob o ponto de vista artístico.

O cenário de André Cortez traz elementos de ambiente corporativo – cadeiras, bancos, mesas, latas de lixo – em disposição vertical que realça a hierarquia das relações e a ambição de ascensão profissional/social. A alteração na disposição desses componentes da cena, na segunda parte do espetáculo, acompanha a abrupta mudança atravessada pela personagem. Os painéis de fundo sugerem uma solidez, não por acaso, desestabilizada à medida que a narrativa avança. E cabe chamar atenção para o equilíbrio cromático e a expressiva valorização de cores neutras (cinza, caramelo).

Os figurinos de Fabio Namatame são facilmente manipulados por Débora Falabella em rápidas trocas durante a apresentação. O predomínio do preto contrasta de modo intencional com a blusa rosa, que destoa da sobriedade do restante das roupas de Tessa. Tanto a blusa quanto a sobreposição desconjuntada de peças do figurino evidenciam o desajuste que a personagem sente de dado momento em diante. A iluminação de Wagner Antonio recorta o espaço – parede e chão – em formas geométricas, diminui de intensidade nas exposições das experiências mais íntimas de Tessa e se torna fria, dura, na revelação do trauma. Nesse instante – e na conclusão –, a atriz fala o texto no proscênio, indicando quebra brechtiana, mas sem se distanciar da personagem. A trilha sonora de Morris pontua a gravidade do ato que leva à virada de Tessa.

Débora Falabella interpreta Tessa numa peça estruturada como narração vivenciada. A personagem relata ao leitor/espectador (e, numa cena, para a câmera) aquilo que passou, mas sem afastamento emocional. A atriz demonstra admirável fluência e fôlego surpreendente na condução do texto. Constrói Tessa – sua firmeza e fragilidade – com exatidão e insere eventuais composições vocais de personagens circunstanciais sem enveredar pelo virtuosismo. Ao domínio da palavra, Débora Falabella acrescenta breves passagens de movimentação corporal desenvolta, especialmente na primeira parte da peça, quando a personagem ainda sustenta seu universo de certezas.

A dramaturgia de Prima Facie guarda possíveis conexões com outro espetáculo realizado por Yara de Novaes e Débora Falabella (mas tendo ambas como atrizes, sob a direção de Grace Passô): Contrações, texto de Mike Bartlett. Mesmo que em proporções distintas, nas duas peças a fronteira entre o público e o privado é demolida e a intimidade, devassada. Particularmente nessa nova montagem, as questões abordadas não ficam circunscritas ao plano do discurso. O texto se estende aos demais componentes da encenação e também aparece corporificado no trabalho da atriz.

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◼️ PRIMA FACIE
Drama | Dir. Yara de Novaes | 12 | 90'
Texto de Suzie Miller
Com Débora Falabella

⏰sex, sáb, 20h | dom, 19h
estreia dia 27/jun
A partir de R$ 19,80

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VISÃO

AZIRA'I,

por CLAUDIA CHAVES - jornalista, escreve sobre cultura e teatro

21/nov

2025

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3160

O projeto de Duda Rios e de Zahy Tentehar poderia ser mais um monólogo autobiográfico. Mas não é. Um texto emocionante. A atuação de Zahy Tentehar é o primeiro impacto. Gratificante. Ao resgatar a sua vivência com a mãe, Azira'i, a primeira mulher pajé da reserva indígena de Cana Brava, no Maranhão, onde ambas nasceram, Zahy é capaz de misturar dois códigos com absoluta proficiência. Em todas as linguagens performáticas: canta, dança, expressão falada.
Altera prosódias diferentes que nos envolvem.

O texto de Zahy e Duda Rios, que também assina a direção com Denise Stutz, se utiliza de princípios de roteiro audiovisual que faz com que a câmera seja capaz de captar diferentes olhares. Fala a filha, Zahy; a mãe Azara'i fica presente nos seus costumes, nas suas atitudes e na exibição de suas lutar. E um narrador que nos puxa para aquilo que deve ser destacado.

Há de se notar a produção primorosa de Andrea Alves, da Sarau, que sempre nos traz espetáculos que falam de nossa brasilidade com um cuidado em todos os detalhes, que permitem que talentos aflorem. O som dos pássaros, a trilha de Elísio Freitas, os figurinos de Carol Lobato, a iluminação de Ana Luzia de Simoni se juntam ao espetáculo visual das projeções do multiartista Batman Zavareze, que inundam o palco de puro deslumbramento.

Há afeto, tristeza, amor, dificuldades, um pensamento profundo sobre o que é ser mulher, mãe, indígena. De um quadro que poderia se recolher ao tema da exclusão, emerge um outro pensamento: como vale a pena ir em frente, como o juntar de pontas, como se fazer um bonde, criar um caminhar pelos trilhos da emoção, que o teatro é capaz de dar.

🎞 𝘾𝙡𝙖𝙪𝙙𝙞𝙖 𝘾𝙝𝙖𝙫𝙚𝙨 é jornalista, com passagem por redações como Jornal do Brasil e Rádio MEC, escreve sobre cultura, comportamento e viagens, misturando informação e afeto.

⏰qui a dom, 20h
📍Teatro Ipanema
a partir de R$ 30

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VISÃO

A COISA

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

28/jul

2025

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2348

Coisa, montagem em cartaz no Teatro Ipanema, conserva elementos do besteirol, o movimento artístico que se estabeleceu principalmente na cena do Rio de Janeiro ao longo da década de 1980. Algumas características conectam o novo trabalho a essa parcela de espetáculos do passado: o humor irreverente, a estrutura de esquetes, a escolha do teatro como temática (com diversas referências espalhadas pelos textos), o comprometimento dos atores com a criação como um todo (em especial, com a dramaturgia) e o perfil modesto, funcional, de produção.

O título da montagem remete às realizações de Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro, uma das célebres duplas do besteirol, como A Besta e A Porta. A abordagem do universo do teatro lembra as espirituosas citações de outra dupla, a formada por Miguel Magno e Ricardo de Almeida, em Quem tem Medo de Itália Fausta? e Os Filhos de Dulcina. A interação entre categorias de artistas (diretor, autor), inclusive, evoca, longinquamente, Monólogos para Atriz e Ponto, esquete que deu origem a Itália Fausta. Além disso, o tom de sátira traz à tona Ifigênia em Sodoma, de Mauro Rasi, brincadeira com o teatro experimental, um dos esquetes de Pedra, a Tragédia, espetáculo do besteirol dirigido por Ary Coslov, também com textos de Miguel Falabella e Vicente Pereira.

A proximidade com o besteirol se materializa ainda na recordação da Commedia Dell’arte, vertente teatral voltada para a improvisação do ator a partir de personagens fixos e portadores de determinados repertórios. Na Commedia, o texto servia quase que de estímulo para os atores exercerem uma interpretação popular, aberta, expansiva. Sem perder de vista as devidas distâncias, a dramaturgia do besteirol surgiu, com constância, do jogo de improviso dos atores.

As articulações entre A Coisa e a linhagem do besteirol, porém, não anulam as diferenças. O humor do besteirol nasceu, não por acaso, dentro do período da ditadura, como manifestação de uma juventude que crescia durante os anos de chumbo e, diante da necessidade de se expressar, priorizou a comédia (crítica, ácida) e procedimentos como a criação coletiva. Esses ingredientes não dizem respeito apenas ao besteirol. Marcaram vários grupos compostos por elencos jovens que despontaram no decorrer dos anos 1970 (Asdrubal Trouxe o Trombone, Pessoal do Despertar) ou no começo da década de 1980 (Manhas e Manias). Mas o movimento do besteirol atravessou o término da ditadura, chegando até o fim dos anos 1980, apesar de abalado pelas mortes precoces (Ricardo de Almeida, Felipe Pinheiro) e pelas guinadas de artistas, que passaram a buscar voos dramatúrgicos mais ambiciosos (Mauro Rasi, Miguel Falabella). Existem mais divergências: A Coisa não envereda pelas sarcásticas observações comportamentais da classe média e da elite, mais um assunto do besteirol.

Ao prestarem homenagem ao teatro, Leandro Soares (autor) e André Dale (coautor) destacam, em A Coisa, peças em que essa forma artística adquire poder de revelação. São os casos de Hamlet, de William Shakespeare, quando o protagonista expõe a verdade sobre o assassinato de seu pai através de uma representação, e de A Gaivota, de Anton Tchekhov, na passagem em que o incompreendido dramaturgo Treplev apresenta a montagem de sua peça e fica profundamente afetado diante da atitude debochada de sua mãe, a atriz-diva Arkádina. Durante o espetáculo, há permanente menção a esses e outros dramaturgos renomados (como Luigi Pirandello), mas a postura de Leandro e André em relação a um teatro clássico é talvez ambígua. Enfatizam peças e dramaturgos, ao mesmo tempo em que se dedicam a uma cena o mais distinta da transposição “tradicional” de grandes textos para o palco.

O rendimento dos esquetes que integram A Coisa é irregular. André Dale, Leandro Soares e George Sauma acertam na sátira aos registros das montagens de peças de Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna e à dramaturgia de musicais biográficos. A cena da conversa repleta de intrigas e maledicências na coxia diverte, assim como a dos atores desesperados por causa da súbita perda de expressão facial – em que pese a duração esgarçada dessa parte. A salvação para esse congelamento estaria na Commedia Dell’Arte – referência histórica, como já dito, bastante apropriada –, na medida em que as máscaras, de certo modo, “libertam” o corpo do ator, levando-o a atuar no extremo das suas possibilidades físicas e a romper limitações ligadas à verossimilhança das situações. No entanto, o quadro da Commedia não alcança a voltagem cômica desejada.

Independentemente do resultado oscilante dos esquetes, André Dale, George Sauma e Leandro Soares evidenciam entrosamento em cena. O primeiro encontra boas oportunidades na parte dos atores sem expressão, o segundo se vale de seu habitual acento histriônico para obter o riso imediato do público e o terceiro demonstra considerável habilidade no aproveitamento das variações de humor contidas nos textos.

Em A Coisa, é perceptível a dificuldade de cortar excessos que alongam os esquetes, problema decorrente do fato de os próprios atores serem os responsáveis pela concepção cênica. Mas, ao valorizarem o trabalho do ator em meio a uma proposta visual absolutamente neutra e despojada (com predomínio da cor branca), André Dale, George Sauma e Leandro Soares afirmam o acontecimento teatral. E o elo com o passado – através dos tributos a artistas, peças e momentos da história do teatro – evita que o projeto ganhe o palco como um show de humor destituído de personalidade.

◼️ A COISA
⏰ sex a dom, 20h | até 03/ago
🏠 Teatro Ipanema
R. Prudente de Morais, 824, Ipanema
16 anos | 60'

▪️Texto de Leandro Soares.
Coautoria de André Dale.
▪️Concepção, direção e atuação: André Dale, George Sauma e Leandro Soares.

Dois velhos amigos se encontram numa praça e descobrem que nunca foram donos de suas próprias ações, pois existe algo misterioso que está sempre dizendo o que devem fazer.
🎭 Daniel Schenker é jornalista, crítico de teatro e cinema, professor e pesquisador. Doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, leciona na CAL e colabora para o jornal O Globo. É autor do livro Teatro dos 4 - A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno (7Letras).
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DIAS FELIZES

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

02/jun

2025

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1991

Ao longo da sua jornada, a Armazém Companhia de Teatro vem sendo norteada, em grau considerável, pela alternância entre montagens de textos escritos dentro do próprio grupo – assinados pelo diretor Paulo de Moraes em parceria com o dramaturgo Mauricio Arruda Mendonça – e de peças clássicas. Encenação do original de Samuel Beckett em cartaz na Fundição Progresso, Dias Felizes pertence ao segundo bloco. Mas nos projetos centrados em repertório consagrado, a Armazém não deixa de afirmar sua autoria por meio de proposições inventivas em relação às obras. Além disso, independentemente das escolhas dramatúrgicas, determinadas características, como o trabalho físico vigoroso do elenco, atravessam os espetáculos.

O corpo é um ponto de conexão entre a linguagem da Armazém e os textos do irlandês Beckett, que, tanto nas peças mais desenvolvidas quanto nas curtas, destaca as limitações e as especificidades físicas dos personagens. É o caso da Winnie de Dias Felizes, sugada pela terra à medida que a peça avança. Desse modo, a valorização do corpo não se dá através da livre expansão pelo espaço, da virtuosística demonstração de habilidades. Ao contrário, os movimentos se tornam cada vez mais reduzidos – no primeiro ato, Winnie aparece da cintura para cima e no segundo, apenas sua cabeça fica fora da terra. Para a atriz que interpreta a personagem é um desafio, e não uma facilitação.

Na obra de Beckett, o importante não está “tão-somente” no que o espectador vê, mas também naquilo que permanece interditado ao olhar, como uma parte do corpo de Winnie. A criação do figurino (de Carol Lobato) não se restringe à parcela exposta do corpo, mesmo que a totalidade da roupa só seja integralmente revelada no encerramento do espetáculo, quando a atriz se desprende da estrutura cenográfica. O figurino sugere certa proximidade com uma linha clownesca. O afastamento do real desponta ainda na concepção do cenário (de Carla Berri e Paulo de Moraes), que, apesar da concretude da espacialidade – uma rampa sustentada por rochas –, evidencia o artifício. O corpo de Winnie afunda, mas ela não parece estar sendo engolida pela terra. O sol abrasador não passa de imagem exibida numa tela. Não há a intenção de fornecer ao público uma fidedigna reprodução visual da situação-base do texto.

Paulo de Moraes não subverte a peça de Beckett. De qualquer maneira, apresenta uma proposta de leitura. O contraste entre o prognóstico trágico de Winnie e seu otimismo inquebrantável é suavizado na encenação. Mas o diretor investe em abordagem minuciosa que realça transições contidas no texto, pontuadas com sutileza na iluminação de Maneco Quinderé. Esse colorido dramático marca a interpretação de Patrícia Selonk, que não uniformiza a trajetória de Winnie, manifestada entre solilóquios existenciais e breves interações com o marido, Willie, papel feito por Felipe Bustamante (que reveza com Isabel Pacheco e Jopa Moraes). Selonk domina a palavra, qualidade minimizada na metade final do espetáculo, quando o diretor intensifica o aparato multimídia. A imagem propositadamente gasta, poluída, falha, de Winnie na tela suscita interessante articulação com a crescente ameaça à sobrevivência da personagem. Essa acentuação da imagem na tela, porém, estabelece inevitável concorrência com a presença da atriz no dispositivo cenográfico. E a música de Ricco Viana adquire interferência excessiva na cena.

A montagem de Dias Felizes proporciona ao público contato com a dramaturgia clássica, encenada com pouca frequência no Rio de Janeiro. As eventuais ressalvas ao resultado decorrem da saudável inquietação de Paulo de Moraes na transposição do texto para o palco.

Drama | Dir. Paulo de Moraes | 14 | 75'
Texto de Samuel Beckett. Com Patrícia Selonk, Felipe Bustamante, Isabel Pacheco eJopa Moraes. A partir de R$ 40

qui a sáb, 19h30 e dom, 19h | seg, 09, 19h30 | 05 a 22/jun

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FÉRIAS

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

09/jun

2025

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2059

O jogo teatral está na base da proposta de um espetáculo como Férias. Jô Bilac investe num enredo simples, que não fere a verossimilhança e nem gera estranhamento no público, apesar de centrado num momento de excepcionalidade na vida de um casal: ao ganharem dos filhos uma viagem de navio, o marido e a esposa dão vazão a peripécias libertárias, que se estendem depois do cruzeiro. Mas o autor desconstrói, com certa frequência, as situações, de modo a lembrar a plateia que se trata de uma peça, de uma brincadeira cênica.

Na encenação dirigida por Enrique Diaz e Debora Lamm, atualmente em cartaz no Teatro Claro Mais, essa concepção é reforçada por meio de registro interpretativo expansivo e popular de Drica Moraes e Fabio Assunção, que, em constante agitação corporal (direção de movimento a cargo de Marcia Rubin), quebram a quarta parede para breves interações com o espectador. A comunicabilidade e o caráter lúdico também se manifestam nas demais contribuições artísticas da montagem, como a pista de skate da cenografia de Dina Salem Levy, que realça o espírito de aventura dos personagens e favorece as possibilidades de extrair humor de circunstâncias físicas, e as roupas e os adereços acrescidos aos trajes básicos (figurinos de Antônio Medeiros) que colaboram para a comicidade dos diversos incidentes. A iluminação de Wagner Antonio alterna, de maneira marcante, a luz aberta da comédia com passagens mais buriladas.

Jô Bilac cria personagens individualizados e, por outro lado, simbólicos – tanto os protagonistas, denominados H e M, como os coadjuvantes, X e Y. Por meio da despretensão, evidencia questões referentes ao relacionamento do casal que rompe com a acomodação do cotidiano e com um padrão de comportamento pré-estabelecido e se permite viver de forma impulsiva, sem regras morais restritivas. Bilac, porém, não deixa que a “seriedade” se instale; prioriza a interatividade cômica. Não haveria problema, mas o autor demonstra considerável dificuldade para desenvolver a peça. Depois que os personagens são expulsos do cruzeiro, os episódios em torno de experiências sexuais soam muito parecidos e o resultado em termos de humor decresce, por maior que seja o empenho dos intérpretes para mantê-lo em alta voltagem.

Drica Moraes e Fabio Assunção narram – descolados, através de comentários – a vertiginosa jornada de seus personagens e a “vivenciam”, seguindo uma determinada linha de atuação. Entretanto, ainda que entrosados, Drica se destaca pelo aproveitamento expressivo do corpo e pelo timing preciso, ao passo que Fabio apresenta trabalho mais linear, em especial pelo fato de falar num mesmo diapasão, sem variedade na inflexão vocal. As cenas de conexão direta com a plateia servem mais para sublinhar o artifício do acontecimento teatral do que para imprimir graça ao espetáculo.

A direção conjunta de Enrique Diaz e Debora Lamm se justifica, a princípio, pela oportunidade de complementação. Enrique tem longa parceria com Drica Moraes no teatro – integraram a Companhia dos Atores, ele como diretor e ela como atriz – e conduziu encenações norteadas por desafios de linguagem. Debora se notabilizou, principalmente como atriz, no campo da comédia, terreno que começou a exercitar como diretora. Em todo caso, a junção de esforços é excessiva, tendo em vista as limitações do material dramatúrgico.

Férias é um espetáculo que ambiciona envolver o espectador com os quiproquós dos personagens e, ao mesmo tempo, desarmar a instância ficcional para frisar que aquilo que se desenrola é “apenas” teatro – proposição que chega ao ápice na descontraída cena final. Mas a peça esgota o potencial de diversão bem antes do encerramento, fragilidade que o elenco e a direção, em que pese a dedicação coletiva, provavelmente não teriam como superar.

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◼️ FÉRIAS
Comédia | Dir. Enrique Diaz e Debora Lamm | 14 | 80'
Texto de Jô Bilac.
Com Drica Moraes e Fabio Assunção
⏰sáb, 18h e 20h30 | dom, 18h
A partir de R$ 50

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VISÃO

COMO NOS LIVROS

por CLAUDIA CHAVES - jornalista, escreve sobre cultura e teatro

05/dez

2025

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3230

Ao vencedor, as batatas!

Em Como nos Livros, Cecilia Ripoll faz da linguagem o eixo primeiro da criação, não apenas como conteúdo, mas como força estruturante. Sua dramaturgia parte de uma provocação engenhosa — e se as traças, ao devorarem livros, absorvessem também a linguagem, a lógica e as contradições humanas? — e ergue a partir disso uma fábula filosófica em que cada personagem é moldado tanto pelo texto quanto pelo livro em que vive.

Essa escolha dramatúrgica é fundamental, pois cada “casa” literária funciona como matriz poética e comportamental:

Filipe Codeço / T. Obaldo, que vive num cartão postal, carrega a leveza melancólica de quem habita uma imagem sempre parada, sempre distante. Seu personagem pensa em fragmentos de memória turística, como se estivesse preso à superfície das coisas — uma traça que vive mais no desejo do que na experiência.

Ana Carolina Sauwen / Tracy, moradora do Código Penal, traduz no corpo o universo das regras, da vigilância, do medo de errar e da vontade de infringir. Tracy é a traça que organiza, acusa, protege e, paradoxalmente, confunde a noção de culpa — um espelho cômico e crítico das nossas obsessões normativas.

Pablo Aguilar / Teseu, alojado em “O Cortiço”, encarna a precariedade, o sufoco cotidiano, a vida espremida entre sobrevivência e desejo. Como uma traça que resiste entre frestas, Teseu traz uma fisicalidade marcada pela violência estrutural que o romance de Aluísio Azevedo expõe — ele é o humano esmagado pela cidade.

Mariana Fausto / Teresa, que vagueia entre romances, é a figura híbrida, polifônica, que transita de um livro a outro como quem busca um lar possível. Teresa é a personagem da instabilidade e da invenção constante, quase um índice ambulante da própria literatura.

Fabrício Nery / Tristão, habitante da Odisseia, carrega o épico no olhar — mas um épico corroído, em miniatura. Tristão oscila entre a bravura e o desespero cômico, como um herói fadado à infinitude dos retornos, mas reduzido à escala de uma traça.

Esse desenho dramatúrgico cria uma ecologia do pensamento, em que cada personagem oferece um ritmo, um campo semântico e um modo de existir dentro do caos que se instala quando uma das traças quebra a regra fundamental: devorar um livro ainda em uso. A culpa, o medo da extinção, a busca por um plano de salvação e a ironia das reflexões filosóficas surgem sempre atravessadas pelas “casas-textos” de cada um.

A direção de André Paes Leme faz dessa estrutura literária um organismo cênico vivo. Ele assume a palavra como matéria física, estende seu sentido ao corpo dos atores e cria, por meio de uma movimentação precisa, um segundo nível de leitura. O gesto mais inventivo — e mais sutil — é o uso do pequeno “abrulho”, um ruído breve, como alguém mastigando papel ou alimento, que pontua certas falas. Esse cacoete sonoro é a respiração da peça: marca o tempo da devoração, sublinha a tensão, ironiza as grandes questões e lembra que todo pensamento nasce de uma erosão.

É nesse tecido — palavra, corpo, ruído — que emerge o grande impasse contemporâneo da peça:
A inteligência artificial vai nos extinguir? A literatura sobreviverá? Onde guardaremos memória, tradição, arte, num mundo em que tudo parece destinado à corrosão?

As traças, confinadas no abafado apartamento em Copacabana, debatem sua sobrevivência com o mesmo desespero lúcido com que discutem o futuro da humanidade. Se devoram livros para viver, devoram também as estruturas que lhes dão sentido — exatamente como fazemos nós.

O elenco, afinado e generoso, navega entre palhaçaria, crítica social e poesia, confirmando os 15 anos do Bando de Palhaços como trajetória de risco e invenção. Sua fábula não é leve — é vibrante. Não é ingênua — é perturbadoramente lúcida.

Como nos Livros é uma peça que ri do humano ao mesmo tempo em que lamenta sua fragilidade. Uma obra que pergunta quem come quem — e se, ao final, não seríamos todos traças: frágeis, famintos, e desesperadamente apegados às palavras que ainda nos sustentam.

◼️ COMO NOS LIVROS
12 anos | duração: 90'
⏰ qui a sáb, 20h | dom, 18h
Até 07/dez
🏠 SESC Copacabana
Rua Domingos Ferreira, 160
A partir de R$ 15

▪️ Texto: Cecilia Ripoll
▪️ Direção: Dir. André Paes Leme
▪️ Com Ana Carolina Sauwen, Fabrício Neri, Filipe Codeço, Mariana Fausto, Pablo Aguilar e Bando de Palhaços
📷 Roberto Carneiro

🎞 𝘾𝙡𝙖𝙪𝙙𝙞𝙖 𝘾𝙝𝙖𝙫𝙚𝙨 é jornalista, com passagem por redações como Jornal do Brasil e Rádio MEC, escreve sobre cultura, comportamento e viagens, misturando informação e afeto.


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VISÃO

PEQUENO MONSTRO

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

02/jun

2025

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1992

Pequeno Monstro coloca a plateia diante do contraponto entre um discurso claro, objetivo, exposto de maneira direta, e uma concepção cênica enigmática, que estimula interpretações de quem assiste e valoriza a interface entre o teatro e outras manifestações artísticas (música, audiovisual e, em especial, artes plásticas).

O ator Silvero Pereira assina a dramaturgia centrada na questão da extrema violência traduzida em bullying e em frequentes assassinatos de crianças e jovens portadores de sexualidades que não se enquadram em normas pré-estabelecidas, massacres que, na maioria das vezes, repousam no anonimato. Silvero aborda essa tragédia perpetuada no decorrer do tempo, que diz respeito a muitos e, em particular, a ele – numa conjugação entre voz individual e voz coletiva que norteou outro solo que fez: BR Trans. Devido à preocupação em conscientizar sobre assunto tão relevante, o discurso é talvez excessivamente evidenciado.

Já na interação de Silvero com a proposta cenográfica (de Dina Salem Levy), Pequeno Monstro é uma montagem repleta de invisibilidades e desaparecimentos. Logo no início da apresentação dessa encenação dirigida por Andreia Pires, um tubo sinuoso de plástico toma conta do palco do Teatro Poeira e Silvero demora um pouco para aparecer – tubo, que, a partir de determinado instante, é simplesmente descartado pelo ator.

A cena também é composta por instrumentos de uma banda, dispostos no palco, mas sem que Silvero atue como músico – com exceção do final, ainda que o ato de extravasamento do ator seja bem mais importante do que um eventual virtuosismo musical. Antes disso, cada instrumento, distanciado de sua utilidade, é usado para simbolizar integrantes da família de Silvero.

Em dado momento, uma voz se impõe, mas sem a imagem do dono da voz, e Silvero transita por partes dos bastidores do teatro, espaços que o público não tem como acessar visualmente. Além disso, ao longo da apresentação desenhos estampam o corpo do ator. Como as imagens são projetadas, não aderem ao corpo. Somem de modo instantâneo, tanto as que se referem à sua ancestralidade quanto aquelas que caricaturam de forma preconceituosa e excludente um corpo que não segue padrões impostos.

A evocação de dolorosas lembranças possivelmente colabora para a segurança de Silvero em relação à palavra, mas a qualidade do seu trabalho, em corpo e voz, não se restringe ao atravessamento pessoal. O ator dá vazão à dramaturgia física de um corpo sufocado que transborda sem, com isso, perder o controle de sua presença em cena.

Pequeno Monstro gera alguma estranheza na oposição entre a concretude do texto expositivo – numa passagem, Silvero quebra a quarta parede e requisita a contribuição do público – e a criação estética – que resulta da articulação entre a cenografia e uma iluminação (de Sarah Salgado e Ricardo Vivian) que faz parte da espacialidade e inunda o palco com tonalidades fortes – mais aberta ao abstrato e repleta de ausências intencionais.

Monólogo / Drama | Dir. Andreia Pires | 14 | 60'
Texto e atuação de Silvero Pereira.

seg e ter, 19h
A partir de R$ 20

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VISÃO

O FORMIGUEIRO

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

27/out

2025

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Apesar de não fornecer um retrato sobre a vida na cidade, O Formigueiro, peça de Thiago Marinho em cartaz no Teatro Glaucio Gill, se aproxima da tradição da comédia de costumes que atravessa o teatro brasileiro desde as primeiras décadas do século XIX. O dramaturgo ambienta sua peça dentro de um único espaço fechado, onde se reúnem três dos quatro irmãos para a comemoração do aniversário da mãe, em estado avançado de Alzheimer.

Esses personagens ganham desenhos diferenciados por meio dos perfis comportamentais que, mesmo facilmente identificáveis (o filho que permanece atado à mãe, o outro assombrado por fragilidade emocional, a filha pragmática), não se reduzem a composições tipificadas. O encontro dos filhos em torno da mãe evoca, ao longe, A Partilha, peça de sucesso que, de maneira mais ambiciosa, lançou, como autor teatral, Miguel Falabella, até então dedicado à escrita de saborosos esquetes do besteirol. A circunstância não é idêntica, na medida em que, no texto de Falabella, as irmãs se reveem para a partilha dos bens da mãe recém-falecida, mas as discussões que irrompem da convivência entre irmãos conectam as duas peças.

Thiago Marinho imprime humor doce-amargo, transitando entre uma linha de comicidade aberta, expansiva, e certa melancolia quando os personagens externam verdades dolorosas. O autor brilha mais na comédia do que no drama, mas o texto só perde força na parte final, voltada para desestabilizadora revelação sobre o passado da mãe. Em todo caso, O Formigueiro desponta como peça de destaque no panorama atual.

O resultado plenamente satisfatório se deve a diversos motivos. Thiago Marinho evidencia habilidade no desenvolvimento de uma situação-base. Insere, de determinado ponto em diante, um quarto personagem (o marido da filha), sem, com isso, provocar uma quebra no desenrolar do texto. Demonstra apreciável domínio de escrita em momentos em que os personagens, envolvidos em ações concomitantes, não estabelecem, de fato, uma interação. E articula bem os personagens com a figura da mãe, presente e mencionada durante todo o tempo, simbolizada pelo xale na cadeira de rodas, invisível aos olhos dos espectadores.

A casa, onde a ação transcorre, também é personagem importante do texto. Victor Aragão concebe a cenografia a partir de uma ideia simples e eficiente: uma sucessão de escadas, de alturas distintas, com objetos afetivos pendurados. A cenografia conta com elementos e utensílios do dia a dia (cadeira, televisão, panelas) que remetem a décadas passadas. O despojamento se mantém nos figurinos de Luísa Galvão, que priorizam cores terrosas.

Decisão de risco, Thiago Marinho acumulou a direção da montagem, ainda que com a supervisão de João Fonseca. Tamanha proximidade não parece ter atrapalhado sua condução, a julgar pelos acertos em tom e ritmo, pelo timing preciso constatado nos trabalhos dos atores. Diego de Abreu, Lucas Drummond, Roberta Brisson e Rodrigo Fagundes formam um conjunto sintonizado com o registro de humor da peça. Apresentam contracena fluente – tanto nas passagens em que travam diálogos conflituosos quanto naquelas em que falam sem se comunicar – e preservam a naturalidade nos rápidos instantes de cada um com a mãe/sogra.

O Formigueiro projeta Thiago Marinho como dramaturgo que captura com sensibilidade o cotidiano. Essa qualidade fica realçada num espetáculo marcado pela harmonia entre as criações artísticas – direção, atuações e construção visual.

◼️ O FORMIGUEIRO
16 anos | duração: 80'
⏰ sáb a seg, 20h | até 27/out
🏠Teatro Glaucio Gill
Pça Cardeal Arcoverde, s/n - Copacabana
A partir de R$ 30

▪️Texto e direção: Thiago Marinho
▪️Com Diego de Abreu, Lucas Drummond, Roberta Brisson e Rodrigo Fagundes

🎭 Daniel Schenker é jornalista, crítico de teatro e cinema, professor e pesquisador. Doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, leciona na CAL e colabora para o jornal O Globo. É autor do livro Teatro dos 4 - A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno (7Letras).

📧 http://danielschenker.com.br
@daniel.schenker

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VISÃO

O MOTOCICLISTA NO GLOBO DA MORTE

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

13 out

2025

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Eduardo Moscovis vem, ao longo do tempo, desenvolvendo trajetória diversificada no teatro, a julgar pelas escolhas dramatúrgicas e pelas propostas de encenação. Mesmo assim, a maior parte de seus trabalhos, ainda que em graus variáveis, evidencia a busca por uma comunicabilidade mais direta com o público. É o que se pode notar nas montagens de textos distintos, passando pelo engajamento (Eles não usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, na versão de Marcus Faustini), pela comicidade expansiva (Duetos, de Peter Quilter, sob a direção de Ernesto Piccolo) e pelo melodrama (Norma, texto e direção de Tonio Carvalho). As incursões pelas peças clássicas também foram norteadas pelo caráter popular – mais em Tartufo, de Molière, levada ao palco por Tonio Carvalho, do que de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, transposição a cargo de Rafael Gomes.

Em contrapartida, O Motociclista no Globo da Morte, atualmente em cartaz no Teatro Poeira, se aproxima um pouco mais de encenações menos voltadas ao diálogo com o mercado, a exemplo daquelas que o ator realizou em parceria com a diretora Christiane Jatahy – Corte Seco, dispositivo cênico calcado na interface teatro/cinema, e O Livro, de Newton Moreno. Não por acaso, esse novo espetáculo é conduzido por outro diretor com assinatura autoral, Rodrigo Portella, que, ao contrário da maioria de suas montagens, renuncia à exuberância, optando pelo despojamento visual – mas um minimalismo minuciosamente concebido. Os reduzidos elementos são orquestrados de forma cirúrgica. Essa qualidade é flagrante, em especial na iluminação de Ana Luzia de Simoni, marcada por gradações quase imperceptíveis e por transições mais contundentes em momentos de revelação e de exposição da dualidade do personagem.

Autor do texto, Leonardo Netto criou um personagem conflituado, que se apresenta como indivíduo pacífico (“manso”, como se define), avesso a embates, mas que se surpreende com a própria reação (como se descobrisse um desconhecido de si) ao ser confrontado com atitudes brutais, perversas. O texto foi estruturado por meio da narração, com o personagem trazendo à tona as circunstâncias conforme se deram. De maneira discreta, o autor atribui aos espectadores um papel ficcional. À medida que o depoimento avança, o personagem – que inicialmente se justifica por ter dado vazão a uma catarse, instante de extravasamento extremado só descortinado diante do público a partir de determinado ponto – se mostra cada vez mais desarmado.

Como dramaturgo, Leonardo Netto procura imprimir sua voz de autor, como fez ao estimular associações entre contextos históricos e a contemporaneidade em 3 Maneiras de Tocar no Assunto. Em O Motociclista no Globo da Morte, essa “presença” do autor se manifesta, com maior realce, na articulação entre o micro e o macro, entre o fato terrível, mas isolado, e as grandes tragédias que vêm assolando o mundo no decorrer dos séculos. Por mais apropriado que seja o esforço em sinalizar a raiz da violência na esfera do cotidiano, a conjugação não soa completamente orgânica dentro do depoimento de um personagem ainda atravessado pelo impacto de suas ações. Mas Leonardo Netto comprova sua habilidade como autor por meio de um texto bastante fluente.

Eduardo Moscovis domina o recurso da narração, presentificando o relato dos acontecimentos. A sintonia com o aqui/agora do ato teatral faz com que a fala do ator surja preenchida por imagens devidamente “visualizadas” pelo espectador. Um depoimento transmitido com objetividade, mas não com distanciamento frio. Moscovis demonstra pleno controle da emoção, considerando o modo como a inclui em trechos do depoimento. Sentado durante todo o tempo numa cadeira – portanto, com movimentação limitada –, Eduardo Moscovis estabelece, por meio de construção física precisa (destaque para os dedos, nos primeiros minutos), um estado de permanente suspensão.

O Motociclista no Globo da Morte é uma encenação destituída de efeitos dispersivos, concentrada na figura do ator e na valorização do texto. Não há excessos na direção de Rodrigo Portella – que lança proposições sutis, mas marcantes – e na refinada interpretação de Eduardo Moscovis – vitorioso diante dos desafios do monólogo.

◼️ O MOTOCICLISTA NO GLOBO DA MORTE
14 anos | duração: 60'
⏰ qui a sáb, 20h | dom, 19h
🏠Teatro Poeira
R. São João Batista, 104 - Botafogo
A partir de R$ 60

▪️Texto: Leonardo Netto
▪️Direção: Rodrigo Portella
▪️Com Eduardo Moscovis

🎭 Daniel Schenker é jornalista, crítico de teatro e cinema, professor e pesquisador. Doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, leciona na CAL e colabora para o jornal O Globo. É autor do livro Teatro dos 4 - A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno (7Letras).

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VISÃO

O CASAL MAIS SEXY DA AMÉRICA

por DANIEL SCHENKER - crítico de teatro

17/nov

2025

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dramaturgo norte-americano Ken Levine destaca, em O Casal mais Sexy da América, a importante temática do etarismo, cada vez mais debatida nos dias de hoje. Por meio de seus protagonistas, a atriz Susan White e o ator Robert MacAllister, o autor aborda a desvalorização de profissionais veteranos, especialmente aqueles cujas carreiras estão ligadas à difusão das próprias imagens na indústria do entretenimento.

Susan e Robert se projetaram como atores que alcançaram sucesso na juventude dentro de uma estrutura de mercado, a exemplo da série para a televisão que fizeram juntos. O sistema foi mais implacável com Susan, como costuma ocorrer com as mulheres, mais cobradas pela preservação de padrões estéticos pré-definidos. Não há como deixar de associar a trajetória de Susan com a de sua intérprete, a atriz Vera Fischer, estrela no passado, que, ao longo do tempo, se tornou menos cobiçada no cinema e na televisão, mas manteve sólido vínculo com a profissão, principalmente por meio do teatro, a julgar pela presença constante nos palcos.

Levine mostra o reencontro de Susan e Robert, após décadas de afastamento, devido à morte de um dos atores da série. A questão do etarismo vem à tona desde os primeiros minutos, quando os personagens revelam como administraram suas carreiras a partir do momento em que os convites glamourosos diminuíram bastante. Mas, depois de estabelecer o contexto ao qual os personagens pertencem, o autor evidencia dificuldade em desenvolver a peça.

A sensação de estagnação, que se impõe à medida que o texto avança, não é minimizada pelos recursos utilizados por Levine. O desdobramento da situação de Susan e Robert por meio de uma circunstância que surge na segunda metade não injeta sangue novo na peça. A inclusão de referências diversas a artistas conhecidos (Nicole Kidman) e a peças (Love Letters, de A.R. Gurney, montada, no Brasil, por Flavio Marinho, com Eva Wilma e Carlos Zara no elenco) não ultrapassa o charme de ocasião. E a alternância de climas, entre a comédia maliciosa e a rememoração dramática de traumas, distancia o texto de uma atmosfera sofisticada.

Responsável pela direção do espetáculo em cartaz no Teatro Clara Nunes e pela tradução do texto, Tadeu Aguiar adequadamente não transporta a peça para o Brasil. Imprime dinâmica no palco e apresenta uma cena com certo refinamento na reprodução realista de uma determinada ambientação – no caso, o quarto de hotel onde Susan se hospeda. O cenário de Natália Lana é muito atraente na harmonização das cores e na disposição do mobiliário. Mas há alguma fricção entre a moldura elegante e as marcas na janela e no rodapé desgastado – sinais tímidos de um luxo decadente que a peça não chega a sugerir, por mais que Susan reclame do quarto assim que entra nele. Essas poluições visuais parecem mais consequência da conservação do cenário, que, de qualquer modo, tem uma concepção mais que inspirada. Os figurinos de Dani Vidal e Ney Madeira estão em sintonia com os perfis de Susan e Robert. A iluminação de Sergio Martins contribui para a instalação das diferentes temperaturas emocionais vivenciadas pelos personagens. A direção de movimento de Sueli Guerra colabora para instantes de humor nas passagens em que ambos são confrontados com suas restrições físicas.

Os atores fazem considerável esforço no trabalho com uma dramaturgia frágil. Vera Fischer transita com habilidade pelos distintos estados da personagem. Expõe as facetas de Susan – entre elas, o comportamento aristocrático e vaidoso que camufla a insegurança em relação à carreira e a desestabilização que irrompe na parte final. Leonardo Franco, num personagem com um pouco menos de nuances, contrasta a interação natural com o tom impostado do ator que interpreta, mas essa artificialidade intencional destoa na última cena. Vitor Thiré realça, com timing ajustado, o contraponto geracional do jovem funcionário do hotel.

O Casal mais Sexy da América é uma peça que procura conciliar a fruição despretensiosa do espectador com uma oportuna reflexão sobre o pantanoso terreno da fama. Ken Levine, porém, não consegue sustentar a vivacidade do diálogo. Insere variações, mas incorre na repetição. Mesmo que o acontecimento teatral diga respeito à cena e não à literatura dramática – e que o espetáculo não seja desprovido de méritos artísticos –, o resultado aqui fica inevitavelmente atrelado às limitações do texto.

◼️ O CASAL MAIS SEXY DA AMÉRICA
14 anos | duração: 90'
⏰ sex, sáb, 20h | dom, 19h
até 203/nov
🏠 Teatro Clara Nunes
Shopping da Gávea - 3º andar
A partir de R$ 25

▪️ Texto: Ken Levine
▪️ Direção: Tadeu Aguiar
▪️ Com Vera Fischer, Leonardo Franco, Vitor Thiré
📷 Joaquim Araújo

🎭 Daniel Schenker é jornalista, crítico de teatro e cinema, professor e pesquisador. Doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, leciona na CAL e colabora para o jornal O Globo. É autor do livro Teatro dos 4 - A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno (7Letras).

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